Carta 2 - Sobre uma estrela verde e seu ethos; Introdução ao Esperanto enquanto língua-movimento

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a2/Esperanto-Klubo-Amundsen-Scott-2022.jpg Clube de Esperanto na Estação Antártica Amundsen-Scott, em 2022. É o clube de Esperanto mais austral do mundo. (Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Esperanto-Klubo-Amundsen-Scott-2022.jpg.)

Este texto foi composto a partir de dois fios e algumas respostas feitas no Twitter no último ano, com algumas alterações no conteúdo e um pequeno post-scriptum. Já fazia um tempo que eu tinha o interesse de organizá-los em forma de texto, mas faltava-me alguma vontade, alguma "faísca" para publicá-lo de facto. Por algum motivo, calhou de esta "faísca" aparecer justamente neste domingo de Cristo Rei. Dedico-o a Antonio Vargas e Ana Bezerra Felício, aos quais boa parte deste texto foi primeiramente apresentado.

Há alguns anos atrás, durante o final da adolescência, eu estava procurando uma língua para um projeto de escrita de ficção - a língua serviria para dar uma sensação de local estrangeiro, como foi feito no filme "O Grande Ditador". O projeto nunca foi adiante (porque não tive nem o tempo nem a paciência para criar histórias do zero) e o interesse superficial na língua se esvaziou. Coisa de adolescente, estava procurando uma língua a mais para estudar e as aulas na universidade estavam começando. Algum tempo depois, durante a pandemia de COVID-19, comecei a estudar um pouco de italiano com um livro de ensino para autodidatas, o “Italiano passo a passo” do selo Berlitz, publicado no Brasil pela Martins Fontes.

Terminei o livro, gostei da serotonina que veio com o processo de aprendizagem e me lembrei da velha língua internacional que tinha deixado de lado. Procurei saber mais um pouco a respeito da língua e achei que sua facilidade era ideal para um período de estudo curto (achava que a universidade iria demorar mais um pouco a retomar as aulas). Após a passagem de ano [de 2020 para 2021], descobri que havia uma associação de esperantistas católicos no Facebook, a IKUE (Internacia Katolika Unuiĝo Esperantista). Por meio de um comentário a respeito do aniversário de São Maximiliano Kolbe, a presidente da organização me convidou a participar dos rosários de sábado, feitos pelo Zoom (a maioria dos já idosos membros da organização mora na Europa). A partir daí, levei o Esperanto um pouco mais a sério, para poder entender pelo menos as orações declamadas.
Nesse mesmo ano, passei a utilizar o Twitter como uma ferramenta de imersão em outras línguas (foi o caso com o francês e o italiano). E mais pro final do ano, comecei a escrever em Esperanto por lá, e encontrei meus primeiros webamigos esperantistas. Desde então, passei a estudar o Esperanto enquanto língua e enquanto movimento, com interesse um tanto oscilante no começo (pensei a parar com os estudos por não encontrar gente com quem conversar). Hoje sou oficialmente filiado à Liga Brasileira de Esperanto (BEL).
Depois de um tempo e de um certo grau de estudo, passei a me interessar mais pela história do movimento esperantista, e comecei a procurar livros a respeito do tema pelo Kindle. Foi quando descobri um livro de cabeceira, que selou de vez minha adesão ao movimento: o "Bridge of Words" de Esther Schor, publicado em 2016 nos Estados Unidos. Esse livro conta a história da língua e do movimento desde o nascimento de Zamenhof. A autora aprendeu um pouco da língua para escrever o livro, misturando historiografia com experiências de imersão; ela foi a congressos americanos, europeus e asiáticos da língua, levando-a da sua terra natal a Cuba, à Polônia, à Turquia, ao Vietnã e até ao Brasil, onde ela visitou a fazenda-escola Bona Espero (Boa Esperança), no interior de Goiás. São conversas com todo tipo de gente, de esperantistas anônimos a famosos, da secretária nepalesa Kalindi ao ex-presidente da UEA, Humphrey Tonkin, passando por dezenas de personagens únicos. (Uma resenha do livro está disponível no LA Review of Books: https://lareviewofbooks.org/article/esperanto-language-of-hope-esther-schors-bridge-of-words/.)
https://lareviewofbooks-media.azureedge.net/unsafe/750x0/filters:format(jpeg):quality(75)/https%3A%2F%2Fassets.lareviewofbooks.org%2Fuploads%2F201609Bridge-of-Words.jpg

Se no fio anterior falei bastante do modo como me tornei esperantista, neste aqui falarei de um fator que foi decisivo em me fazer continuar a estudar a língua – sua comunidade. Vou usar este fio para mencionar algumas coisas a respeito do movimento e dos seus membros.
Para começar, como muitos censos não têm dados precisos a respeito do cenário linguístico de seus países, não é possível ter um número exato de esperantistas ao redor do mundo. É preciso utilizar estimativas, muitas delas divergindo olimpicamente uma da outra. A mais recente, feita por Svend Nielsen em 2017 [https://svendvnielsen.wordpress.com/2016/12/10/percountry-rates-of-esperanto-speakers/], é de cerca de 63 mil falantes de Esperanto ao redor do mundo. (O então estudante de estatística também deu algumas explicações sobre o seu trabalho à Libera Folio [Folha Livre] em fevereiro de 2017 [https://www.liberafolio.org/2017/02/13/nova-takso-60-000-parolas-esperanton/].) É pouco comparado a outras línguas naturais, mas já é o suficiente para ser a língua artificial mais falada. (A propósito: o estudo diz que não há correlação significativa entre o número de falantes de Esperanto e uma dada língua nativa. O que existe é a tendência de países mais ricos, com mais acesso à internet e contribuições culturais e científicas terem maior nº de esperantistas.)
O fato de a língua ser declarada "neutra" não quer dizer que os esperantistas o sejam politicamente. Isso já foi tema de bastante discussão no passado, quando o movimento foi alvo de repressão por governos nazifascistas (Alemanha, Itália, Espanha) e stalinistas (União Soviética e arredores) durante o segundo quarto do século XX. (Veremos mais a respeito destas perseguições mais tarde.)
Geralmente os esperantistas se identificam mais à esquerda no espectro político – socialistas, anarquistas, sociais-democratas e sociais-liberais formam a maioria dos membros. Contudo, não é incomum encontrar alguns conservadores, liberais ou libertários no meio. (Já me deparei no Twitter [não me peçam pra chamá-lo de “X”] com alguns esperantistas adeptos do nacional-conservadorismo europeu sem se importar com a aparente contradição em termos. A realidade desafia quaisquer teorias pré-moldadas e explicações ready-made…) Como a língua de Zamenhof foi criada em parte como reação aos nacionalismos étnicos de seu tempo, a maioria dos esperantistas é bastante desconfiada dos movimentos nacionalistas atuais. Há até uma associação especificamente dedicada a anacionalistas, a Sennacieca Asocio Tutmonda (SAT). Isso também se dá pela perseguição estatal que o movimento sofreu durante parte do século passado, como já foi citado aqui. (O "Dangerous Language" de Ulrich Lins trata destas perseguições em maiores detalhes.")


Esperantistas presentes em uma manifestação do Partido Socialista Polonês, durante o período entreguerras. (Fonte: @_SATeH_/Twitter.)

O Esperanto enquanto língua tem um corpo literário razoável, de mais de 25 mil livros publicados, entre traduções e publicações originais. Tem de tudo: poesia, prosa, contos, histórias de terror, drama, comédia, política, esporte, geografia, entre outros temas. Uma boa introdução à literatura em Esperanto é a “Nova Esperanta Krestomatio”, compilada por William Auld em 1991, infelizmente fora de estoque no Brasil, que apresenta ao leitor vários textos de autores esperantistas, em prosa e poesia. (Auld também fez uma lista de leitura básica para esperantistas em 1988, atualizada pelo próprio em 1997 [https://www.esperanto.be/fel/but/baza.php]; os autores Sten Johansson, Nicola Ruggiero e Suso Moinhos fizeram uma lista própria em 2023 [https://www.liberafolio.org/2023/09/12/baza-legolisto-aktualigita-proze-kaj-poezie/], atualizada com obras adicionais posteriormente escolhidas por eles.)
Tem também as suas tradições, como o Dia de Zamenhof (ou Dia do Livro em Esperanto), celebrado todo dia 15 de dezembro. É dia de reunião entre esperantistas por todo o mundo; comprar um livro em esperanto nesse dia é prática sugerida. Mas o que me fez ficar no movimento foi com certeza a gente que o compõe. Encontrar webamigos e webconhecidos esperantistas foi um fator primordial para continuar a ter interesse em estudar a língua de Zamenhof. O Esperanto é uma língua que me diverte bastante. Gosto muito de olhar os dicionários! E quero aprimorar minha gramática para elaborar textos melhores e mais complexos. Quando brinco com a gramática do Esperanto, me sinto em casa.


Livros em Esperanto no Congresso Universal de Esperanto realizado em Roterdã, Países Baixos (Holanda), em julho de 2008. (Foto: Ziko van Dijk/Wikimedia Commons)

Para além do divertimento, há também um senso de "carregar a tocha da tradição". Falar em Esperanto é lembrar da existência de gente que lutou por um mundo mais justo e solidário, que deu o sangue (às vezes literalmente) por um ideal muitas vezes incompreendido ou escarnecido. Quando Zamenhof criou o Esperanto, pensava em contornar os obstáculos da Torre de Babel. Por meio de sua criação, a incompreensão e o ódio cessariam, e o mundo tornar-se-ia um grande círculo familiar. Como escreveu Esther Schor em "Bridge of Words":

“A história da Torre de Babel não é só um mito de incompreensão; é também um mito da diáspora enquanto condição existencial. Do mito de Babel, Zamenhof intuiu que o perpétuo impulso dos humanos para marcar "um nome para si" num pedaço de território só agravava o problema da incompreensão. E enquanto Zamenhof aceitava a incompreensão como parte da condição humana, ele se recusava a aceitar seus custos humanos: vidas perdidas para o tribalismo, o antissemitismo e o racismo; pogroms já ontem e talvez uma guerra de impérios amanhã. Em vez disto, tratou de convencer os seres humanos mal-entendidos e dispersos de que eles tinham a capacidade, sem intervenção divina, de entender melhor um ao outro ao se juntarem não pela terra, nem por uma torre, mas pela língua.” (SCHOR, 2016)
Muita coisa mudou. A ideia da Babel como problema tornou-se Babel como solução. Hoje a Associação Universal de Esperanto é defensora declarada dos direitos linguísticos, uma bandeira que me é cara desde que comecei a me interessar pela língua e pela linguística. Mas a ideia de um mundo mais justo e pacífico ainda persiste, conquanto pareça mais implausível que o Flamengo ganhar alguma coisa este ano [e de fato não ganhamos nada naquele ano (2023)]. É parte da idéia interna de um movimento que sobreviveu à golpes potentes de vários lados, a perseguições implacáveis e cuja mera existência, firme e forte, conquanto não seja grande, é um pequeno milagre da natureza.

[Os dois primeiros blocos de texto surgiram primariamente como resposta a Antonio. Os dois seguintes surgiram como resposta a Ana Bezerra.]

Zamenhof fundamentalmente queria que os homens deixassem de lado suas diferenças étnicas e passassem a ver o outro como ele é, em toda a sua humanidade, dentro dos limites de sua época. Só que gradualmente foi percebendo que não se tratava de um problema meramente linguístico. Era também um problema religioso e político. Dos estudos que fez a respeito das crenças do rabino Hilel, o Ancião, começou a moldar a filosofia de vida que mais tarde chamou de homaranismo. Seus escritos religiosos nunca ganharam a tração que ele esperava ter. Ele morreu em meio à 1ª Grande Guerra, doente e desiludido com o fato de que o seu sonho estava para ele como Israel estava para Moisés: a ambos lhes foi dado o dom de vislumbrar a Terra Prometida, mas não a possibilidade de adentrá-la de fato.

O tempo e os homens foram cruéis com quem quis seguir o sonho de Zamenhof. Seus três filhos, Adam, Klara e Lidia, foram mortos nas mãos do nazismo junto a vários outros esperantistas durante os expurgos de Stalin e a Segunda Guerra. Os membros da União Soviética de Esperanto (SEU) já tinham começado a sofrer seu martírio alguns anos antes, durante os Grandes Expurgos de Stalin, entre 1936 e 1938, surgidos do racha entre stalinistas e trotskistas e da briga entre nacionalistas e internacionalistas no Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Quase todos os esperantistas mais famosos da SEU e vários membros da SAT foram perseguidos e mortos durante este período, sob variadas alegações – cosmopolitismo, espionagem para estrangeiros, terrorismo, aliança com o fascismo etc. O mais provável é que o "crime" deles tenha sido o desconforto com a política linguística de Stálin, compartilhada por muitos membros do PCUS, de que o russo deveria ser a principal língua de comunicação inter-étnica na União e no exterior.

E a despeito disto tudo, o movimento esperantista sobreviveu. E muitos dos que hoje fazem valer o nome de "esperantistas" também o fazem para dar um sentido redentor para à perseguição que os esperantistas do passado sofreram, para dizer que suas mortes não foram em vão. E o fazem também com questões similares às suas. Muitos deles também são negros como você. Também sentem na pele o racismo que sofrem, que outros sofrem e que podem sofrer. Pode ser que olhem para as chagas dos esperantistas perseguidos e vejam algo sombriamente familiar nisto.

Se hoje sou esperantista, o sou em parte pelo sonho de Zamenhof, cuja luta contra a disciminação anti-judaica se faz presente de modo velado em sua obra; e talvez em parte por um velho senso cristão de um mundo onde não há judeu nem grego. E algo mais do que isto, uma visão do mundo como ele é e como ele pode ser: um caravançará de povos, crenças e religiões, em relativa ordem e harmonia. Como preconiza a sexta estrofe da "Oração sob a bandeira verde", poema-oração do velho Zamenhof (estrofe infelizmente cortada do recital no 1° UK):
Kunigu la fratoj, plektiĝu la manoj
antaŭen kun pacaj armiloj!
Kristanoj, hebreoj aŭ mahometanoj
ni ĉiuj de Di' estas filoj.
Ni ĉiam memoru pri bon' de l' homaro,
kaj malgraŭ malhelpoj, sen halto kaj staro
al frata la celo ni iru obstine
antaŭen, senfine. (ZAMENHOF, 1905)

O peito vibrando, uni-vos, irmãos!
Avante da paz pelos trilhos.
Ainda que hebreus, muçulmanos, cristãos,
nós todos de Deus somos filhos!
Da sorte dos povos somente lembrados,
vencendo barreiras, fiéis e ousados,
à meta fraterna, constante,
corramos avante!
(Tradução para o português de Geraldo Mattos, 1983. Disponível em http://londrinaesperantogrupo.blogspot.com/2011/03/prego-poemo-de-zamenhof-poema-prece-de.html.)
Vida longa a Zamenhof! Vida longa ao movimento esperantista! E vida longuíssima a todos aqueles cujo amor à linguagem e compaixão para com o próximo os impele a lutar por um futuro em que todas as línguas vivam, e tenham vida em abundância!

P.S.: No fio original em resposta a Antonio, escrevi há pouco mais de ano: "Por sinal, para além das pesquisas a respeito do movimento esperantista, gostaria também de poder ir atrás de pesquisas a respeito da vida de Zamenhof. Alguns livros têm por tema a influência judaica no desenvolvimento da língua e do ethos esperantista. Me interessam muito."
Pois bem: este interesse foi parcialmente cumprido no meu trabalho de conclusão de curso em andamento, que tem por tema justamente o Esperanto - ou melhor, a criação de um site para o ensino de Esperanto. A criação do código-fonte deve começar em breve. A conferir...

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